A história da onça do Claudio

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A rotina do acampamento da expedição de contato dos índios Panara comandada por Claudio e Orlando Villas Boas era sempre a mesma. Como as casas eram dentro do mato o limite para tomar banho com luz do dia era quatro horas da tarde e o jantar servido as cinco. Todo mundo comia de frente para o rio em silêncio, assistindo o último clarão do céu morrer no espelho d’água do rio Peixoto de Azevedo. As seis todos já estavam em suas redes e o falatório na diversas línguas ia até as sete. Na casa do Claudio uma lamparina à querosene ficava acesa até altas horas. Era para lá que eu ia todas as noites depois do jantar. Claudio gostava de relembrar os restaurantes que costumava frequentar. Quase sempre faziamos uma viagem imaginária, a pé, que começava nos altos da Avenida Paulista e terminava na frente de uma prato de capeletti a romanesca no Gigetto, o restaurante preferido do Claudio.

Luigi Mamprim era o fotógrafo da revista Realidade, dormiamos na mesma casinha mas ele dormia cedo. Eu ficava sentado em um banquinho na frente da rede do Claudio ouvindo tudo, sermão contra os militares, estratégias do contato e histórias de mato, do desbravamento do Brasil Central de cair o queixo. Eu adorava ouvir o Claudio.

Onça é um bicho que não sai da cabeça de quem anda no mato um segundo e alimenta o imaginário de gente que não sabe que, o que mata no mato é o medo. Caboclo do mato só pensa nisso e lenda é o que não falta. Nós, lá no Peixoto tinhamos visto muitos rastos nos barreiros e eu mesmo quando voltei para o acampamento depois de uma tarde de chuva encontrei umas pisadas do tamanho da minha mão aberta ao lado da minha rede. Foi um baque. Na noite anterior eu e o Claudio tinhamos visto a silhueta maravilhosa, contra a luz de uma lua cheia, de uma onça enorme atravessando a pauleira da derrubada do campo de pouso. Resolvi mudar minha rede para perto do trempi da cozinha que ficava com fogo a noite toda. Naquela noite a conversa foi sobre onças e Claudio me contou esta história sobre uma onça que andou ao lado dele o dia todo.

Claudio e os irmãos estavam fazendo a picada do Brasil Central e os trabalhadores que Claudio chefiava resolveram fazer um levante e não seguir mais viagem com ele. Claudio deixou os trabalhadores e voltou a pé para montar uma nova expedição. No segundo dia de caminhada, logo pela manhã, uma onça pintada começou acompanhar os passos do Claudio a 15 metros dele, paralela a picada. Claudio tinha na cinta um Schimth Weston calibre 38, cromado, cabo de madre pérola, uma jóia. Logo que ela apareceu, ele chegou a levar a mão na coronha. Andou um bom pedaço com o antebraço apoiado na cartucheira, foi afrouxando e cada vez mais prestava a atencão na beleza do bicho. Ele me descreveu a luz que entrava pelas frestas da capoeira e faziam o pêlo da onça pintada brilhar. Claudio descrevia o passo cadenciado, a beleza das mãos e me disse que os olhos dela faiscavam quando os olhos deles se cruzavam. A região era plana, uma mata de transição, um cerradão meio limpo por baixo onde ele podia ter um bom controle do bicho. Uma bela hora resolveu dar uma parada para acender um cigarro. A onça parou e sentou. Trocaram mais olhares e a onça lambia os bigodes com uma língua enorme, tranquila. Claudio resolveu brincar, deus mais uns dez passos e parou de novo. Ela levantou com muita calma andou mais um pouco e sentou novamente, continuou olhando para o Claudio, lambendo os bigodes. Claudio achou divertido a brincadeira com o bicho e retomaram a caminhada, ela sempre ao lado dele. “De vez em quando ela sumia e eu ficava preocupado, encostava em uma árvore grande e esperava um pouco, voltava a caminhar e logo ela aparecia sempre paralela a picada, pertinho de mim”.

Um pouco antes de escurecer Claudio montou um girau e armou sua rede em dois paus finos a dois metros do chão. Não sentiu medo. Adormeceu e sonhou com a beleza dos movimentos da pele brilhante da onça pintada, sua companheira de caminhada.

3 Comentários

Samuel Marcondes   em 5 agosto, 2010

Com certeza essa foi uma época de ouro para os desbravadores e aventureiros.
Me imaginei sentado com vcs, ouvindo a história. Vc fotografa até quando escreve!
Abs!!!

Lineu   em 5 agosto, 2010

Que belo causo. A onça é realmente uma entidade. Eu nunca tive o prazer de ver uma no mato, mas ando sempre esperando pelo dia. Dia desses, no começo do inverno, uma onça parda desceu das montanhas e caçou uma égua velha que andava solta nas campinas do pé da serra. Tratamos de alertar o povo do entorno para que não atirassem no bicho, pois além de tudo descobrimos que ela desceu pra dar cria. Depois de matar a égua ela voltou 3 noites para terminar de comer a carcaça. Uma pena que eu não tenha conseguido fazer funcionar a armadilha fotográfica gambiarra. Agora ela voltou para os cumes e vales altos, onde vimos uns dejetos de anta, que parecem azeitonas, mas isso é outro causo…

Ney   em 5 agosto, 2010

Que história magnifica, gostaria muito de ter participado de uma expedição dessas, não sei se com tanta coragem, aqui na Amazônia a fama da onça corre longe. Parabéns, um abraço.

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